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"Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo; se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los sentados enfileirados em salas sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem."

( Carlos Drummond de Andrade )


domingo, 17 de outubro de 2010

O primeiro caderno

O primeiro caderno
Emoções há muitas na vida, e de todos os tipos, mas raras se comparam em intensidade àquela que a gente tem quando se compra o primeiro caderno escolar. De cinqüenta folhas ou de cem, pautado ou sem pauta, humilde ou sofisticado, não importa: o primeiro caderno é o símbolo de uma nova etapa. De uma nova vida. Pois as páginas em branco, modestas e radiantes em sua pureza, são exatamente isto: uma prova de renovação, de um início de vida. Mesmo quando a sua vida ainda está no início (e muito mais quando se é adulto: quem de nós não resolveu passar a vida a limpo, pensando exatamente nisto, num caderno novinho a ser escrito com todo o capricho e dedicação?).
Não sei se ainda é assim, mas quando eu era guri a gente recebia, no colégio, uma lista do material a comprar, incluindo os cadernos. Esta simples lista já era, em sua discriminação, um excitante enigma. Cadernos de cem folhas, de duzentas: aquilo decerto era para matérias muito sérias, de longas digressões. Os cadernos mais finos acenavam com coisas leves. Os quadriculados se propunha a nos ensinar as disciplinas de geometria, das contas de aritmética, o caderno de caligrafia lembrava que há limites para a dimensão das letras. Havia um caderno de música, decerto para entusiasmar um futuro Beethoven, e um caderno de desenho, este a desafiar a imaginação com folhas brancas de papel cartonado. E havia os humildes blocos, já resignados a serem riscados, borrados, engordurados e rasgados; a terem suas folhas transformadas em aviãozinho (qual a criança que não faz aviãozinho de papel quando a professora dá as costas?).
Os cadernos exigiam mais respeito; os mais aplicados chegavam a encapá-los com papéis de presentes alegres. Mostrar os cadernos aos colegas fazia parte do excitante clima do começo do ano, que chegava a seu ápice quando se escrevia, na primeira página do primeiro caderno, a primeira lição de casa: um ato realizado num clima de quase mística unção, as letras sendo caprichosamente desenhadas, uma após a outra.
Mas os dias passam, as lições para casa se sucedem, os cadernos, como todas as coisas, vão ficando velhos, manchados, amassados. Algumas folhas são arrancadas, outras caem, e um dia a capa se desprende também e é colada com um durex que logo fica também sujo, encardido. O caderno resiste bravamente, mas o tempo trabalha contra ele: um dia chega o fim do ano, os exames finais. Há ainda uns derradeiros momentos de glória, de febril emoção, quando o caderno é de novo e nervosamente folheado, em busca dos pontos que cairão na prova.
Mas aí vem o resultado final - passei! Mãe, pai, passei! - num gesto de irresponsável, mas compreensível alegria, o caderno é arremessado longe, às vezes até pela janela. Cai na rua, um carro passa sobre ele, termina de destruí-lo: o vento leva para longe as folhas soltas, e algum papeleiro recolherá o que dele resta. O menino vai para as férias, volta, e um dia entra numa papelaria, os olhos brilhando, com uma nova lista de cadernos para comprar.


Texto de: Scliar, Moacir. O primeiro caderno.
In: Um País chamado infância. 19 ed. Ática.
São Paulo, 2005. p 51 - 53.

Um comentário:

Suziley disse...

Lindo texto do Moacir Scliar, Solange. O caderno, o primeiro e os demais são tudo de bom. Há até uma música que fala desse nosso querido amigo. "Não me deixe num canto qualquer". Bela postagem, parabéns!! Boa noite, beijos :)